Andaimes do Pensamento

Andaimes do Pensamento
Andaimes feitos de bambu

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Esvaziamento e Reencontro


Hoje tirei o dia para fazer uma coisa que vinha adiando a muito tempo: me desfazer da minha cama de casal. O tálamo já não cumpre a função, é um trambolho enorme a ocupar um espaço muito grande em um quarto muito vazio de gente.

Foi um móvel que me atendeu bem por 12 anos. As gavetas da cabeceira e da parte de baixo estavam cheias de papel. Esvaziá-las foi um exercício emocional e espiritual razoável. Muitas lembranças vindas através de contas velhas, cartões de lojas, anotações quase ilegíveis.

De tudo que retirei o que mais me doeu foram os papéis referentes à saúde da Keila: receitas médicas, exames, radiografias, relatórios, diagnósticos. Todos necessários em seu tempo, agora inúteis, só ocupam espaço, ociosos.

Rever cada um destes papéis trouxe uma enxurrada de memórias. Quantas lutas para promover a saúde, para evitar ou limitar a dor, para controlar os bons índices. Quantos especialistas consultados, quantos pareceres, indicações, hospitais e clínicas.

A primeira e forte impressão que tive nesse exercício foi da inutilidade daquilo tudo. Afinal, depois de tudo, não foi a morte quem ganhou a parada? Aquele gosto de frustração ficou amargando minha boca um bom tempo. “Você é pó e ao pó voltará” (Gênesis 3.19) não foram as palavras do próprio Criador ao homem, no momento de maior indignação divina? Não indicariam elas a futilidade de se lutar pela vida? Não seriam elas a apologia perfeita do existencialista? Vir do nada, ir para o nada, sem nenhum objetivo a não ser trabalhar, sofrer e render-se ao fim.

Embora vindas dos lábios do Eterno, tais palavras não encerram toda a verdade sobre nós. Ele nos comunicou muito mais que essas palavras secas. A revelação fala de nós como antes do pó e após o pó. No Gênesis a narrativa da criação do homem fala de um ser sendo modelado pelas mãos do Criador a partir do pó da terra, mas sendo animado pelo sopro divino. Algo da eternidade foi emprestada a esses elementos sujeitos a desagregação. O pecado trouxe o rompimento com o Criador, tornou o homem sujeito à corrupção. Mas este não é o destino final. A terra clama por ser liberta desse cativeiro da corrupção e esse clamor tem uma resposta da parte do Altíssimo (Romanos 8.18-25). O Pai celestial enviou seu Filho, sujeitou-o à condição de fragilidade e submeteu-o ao sofrimento e morte, para resgatar-nos desse cativeiro. Em Cristo, somos destinados ao reencontro. Aqueles que faleceram em Cristo e cujos elementos formadores se desfizeram e se reincorporaram no todo hão de ser trazidos de volta. Novo corpo, para uma nova realidade (1 Coríntios 15).

A cama aguarda alguém que a queira buscar. Termino meu pequeno exercício de fé, essa faxina do quarto com uma faxina na alma. No fim, no triunfo de Cristo, nos reencontraremos. Pois em Cristo tudo se reencontrará e tudo convergirá para a glória de Deus. “Porque a vontade de meu Pai é que todo aquele que olhar para o Filho e nele crer tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia”. (João 6.40)



Postado no Facebook em 13/02/2013

sábado, 27 de outubro de 2012

O Tempo e a Dor (ou Quase 12 Anos)


Para tudo há uma ocasião certa; há tempo certo para cada propósito debaixo do céu: Tempo de nascer e tempo de morrer…
Eclesiastes 3.1,2

“Só o tempo vai curar essa dor.” Ouvi diversas variações dessa frase desde que minha esposa morreu, a pouco mais de um mês. É uma frase verdadeira, mas apenas em parte. O tempo sozinho não cura. Ele é um ingrediente importante, mas não único. O mero passar do tempo não cura. Os eventos da vida que vêm no correr do tempo impõem a nós o continuar, o agir, o avançar. O tempo associado às amizades, à oração, à reafirmação das certezas bíblicas ajuda na cura. Mas não é uma cura linear. Há dias melhores, dias piores. Podemos encontrar amigos e rir de velhas piadas em um dia, e no outro nos rendermos às lágrimas pela lembrança de um gesto simples da querida esposa que não mais está aqui para repetir tal gesto.

Sinto-me premido entre dois tempos: (1) Há um pouco mais de um mês minha esposa faleceu; (2) hoje (dia 15/07) faríamos 12 anos de casados.

O sábio escritor de Eclesiastes disse que há tempo para tudo. O meu tempo com Keila foi quase 12 anos. Alegrias e tristezas, derrotas e vitórias, decisões erradas e acertadas. Mas todo o tempo foi regado de muito amor e amizade, de compromisso renovado e companheirismo. Em mim fica a sensação de que esse tempo passou muito rápido e que foi interrompido cedo demais.

O tempo cura a dor, mas agora é o tempo da dor. Mas o tempo da dor é também o tempo da gratidão. Sou grato pelo privilégio de desposar uma mulher sábia. De ter sido tantas vezes socorrido por sua sabedoria, corrigido por sua justiça, fortalecido por sua firmeza, me alegrado por seu sorriso. Sou grato por esta mulher tão especial ter desposado um jovem tão arrogante, que tanto teve de aprender ao seu lado. O tempo ao seu lado foi um tempo para experimentar a graça de Cristo de uma maneira única.

Não sei quanto tempo demorará esta mistura confusa de dor e gratidão. Espero que este seja também um tempo de cura, de fortalecimento e de orientação do alto sobre o que devo fazer daqui pra diante. Obrigado, Senhor, por esses quase 12 anos!

Publicado no boletim da Igreja Presbiteriana "Tanque de Betesda" em 15/07/2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Gratidão



Assim, permaneçam agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor.
1 Coríntios 13.13

A dor é um desses momentos em que nos vemos mais tentados a ceder a fraquezas como pânico, angústia, incredulidade ou revolta. Em meio à dor de ter perdido de maneira tão abrupta a minha querida esposa, Keila, não quero ceder a uma fraqueza particular: a ingratidão. Tento alimentar meu coração com a certeza de que o preceito bíblico de dar graças a Deus em tudo não perdeu a sua validade, mesmo no luto. Desejo ser grato a Deus pela maravilhosa mulher que Ele me deu, que tanto fez por mim e por nosso filho. Incentivadora, carinhosa, amiga – tantas qualidades em uma pessoa única.

Mas a minha gratidão ao Criador vai para além daquilo que me beneficiou particularmente em minha relação com Keila. Sou grato pelas dádivas espirituais com as quais o Pai, através da graça de Cristo Jesus na força do Espírito Santo a revestiu para a vida eterna. Sou grato por todas as manifestações destas dotações na vida de Keila, e por tantos outros além de mim foram por ela abençoados.

Sou grato a Deus pela fé que acompanhou a vida da Keila. Palavra pequena, mas com tantos importantes significados, fé é basicamente convicção. A certeza da salvação, não por méritos pessoais, mas pela obra de Cristo na cruz, foi uma marca fundamental em tudo que Keila realizou. Ela confiava em Cristo, depositando nele seus pecados e recebendo a promessa da vida eterna e o selo do Santo Espírito. Mantida por esta fé, Keila também zelava pela fé enquanto deposito de doutrinas que foram reveladas por Deus para formar Cristo em nós. Ela amava a Palavra de Deus.

Sou grato Deus pela esperança que alimentou os planos de Keila. Como crente em Cristo, Keila usou deste mundo e nele sofreu, como parte da criação decaída. Mas o fez na esperança de que Cristo cumprirá sua preciosa promessa. Ele retornará a este mundo que o levou à cruz, não mais em estado de humilhação, mas em sua plena glória, como Rei do universo, que por Ele será redimido. Keila alimentava seu coração com esta promessa e servia o Reino dos céus em tudo que fazia, esperando o galardão que o Pai bendito dará a todos os redimidos em Cristo.

Sou grato a Deus pelo amor que tão prodigamente se manifestou na vida da Keila. Deus nos amou primeiro, amou o mundo pecador e decaído, rebelde e empedernido. E no seu amor trouxe a redenção em Cristo. Keila era profundamente tocada pelo amor de Cristo por si. Sendo tão inexplicavelmente amada dele, procurava amar tudo que seu Senhor e Rei ama. Amava os pecadores ainda perdidos e amava os alcançados que fazem parte da igreja. É com esse amor vindo de Jesus que Keila fazia tudo em sua vida.

Ergo a minha voz e pensamento em oração a Deus para dizer obrigado pela fé, esperança e amor que tanto marcaram a vida da minha esposa. Convido você a juntar-se a mim em ação de graças.

“Deem graças ao Senhor, porque ele é bom. O seu amor dura para sempre!” (Salmo 136.1)

Rev. Ricardo Henrique da Silva
Publicado no Boletim da Igreja Presbiteriana "Tanque de Betesda" do dia 03/06/2012

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

GLÓRIA NOS CÉUS E PAZ NA TERRA

“Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens aos quais ele concede o seu favor.” (Evangelho de Lucas 2.14)

Uma das palavras mais frequentemente ligadas à descrição de Deus é a palavra “glória”. Por constar em várias passagens bíblicas, esta palavra aparece com frequência na nossa linguagem cristã. Nossas mensagens, letras de canções, conversações diárias e até interjeições citam “glória” com muita facilidade. Nem sempre, porém, pensamos com clareza sobre o sentido real dessa tão constante expressão.

Nas Sagradas Escrituras “glória” expressa uma idéia de peso, algo intenso e incontornável. Fala de luminosidade ofuscante, algo que não pode ser ignorado, algo cuja presença se faz sentir de maneira inegável. Estas idéias não são em si boas. Um terremoto é algo que não se pode ignorar, mas que é percebido com um profundo sentimento de terror. Um oposto à glória é a mais pacífica serenidade. A paz, a mansidão de uma alma segura, é uma espécie de oposto ao terror provocado pela intensidade fulgurante da glória.

A princípio, glória e paz seriam opostos irreconciliáveis. Ou sou assustado e perturbado pela glória, ou sou confortado e serenado pela paz. Mas o Natal, o advento do Salvador, Jesus, traz a imagem da perfeita conciliação entre glória e paz.

O evangelho de Lucas narra a cena dessa conciliação. Um grupo de pastores é chocado pela visão de anjos, seres celestiais criados por Deus que traziam uma mensagem. A aparição desses anjos criou uma atmosfera gloriosa. Por trazerem uma mensagem vinda do trono do Eterno, estes anjos manifestaram algo do peso e da claridade daquele que os enviara. Assim os pastores ficaram aterrorizados, mais do que se fossem surpreendidos por uma catástrofe natural.

Foi necessário que o anjo os confortasse diante do tremendo susto: “Não tenham medo. Estou lhes trazendo boas novas de grande alegria, que são para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, lhes nasceu o salvador, que é Cristo, o Senhor.”(Lucas 2.10,11)

O brilho fulgurante e pirotécnico da manifestação celestial é contrastado com a manifestação gentil do Messias prometido no mundo: “Isto lhes será de sinal: encontrarão o bebê envolto em panos e deitado numa manjedoura.”(Lucas 2.12) O Salvador, que teria glória mais intensa do que a de todos os anjos juntos, apresenta-se da maneira mais pacífica possível. Ele é um bebê indefeso, carente dos cuidados mais elementares, guardado em um ambiente inóspito, próprio não a um recém-nascido, mas a animais. Uma imagem que, longe de produzir em nós medo, produz os sentimentos de conforto, de paz. Apesar das dificuldades pelas quais passaram seus pais, o bebê está sob cuidados minimamente necessários para a sua sobrevivência.

Na encarnação de Cristo encontramos a perfeita conciliação entre glória e paz. Nas maiores alturas, Deus habita na mais intensa glória, glória esta que deveria consumir este mundo de misérias, eliminando tudo que contrasta com o resplendor divino. Mas Deus envia seu Filho para se envolver em nossa miséria. Ele abre mão do peso de glória celestial e se faz um de nós. Em seu envolvimento, o Cristo se submete à humilhação para nos trazer a paz. Glória nas alturas e paz na terra só são possíveis em Jesus! Aleluia! Que neste Natal nossas vozes se unam ao coro celestial!

sábado, 20 de agosto de 2011

Dê Preferência ao que Permanece


Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor…

1 Coríntios 13.13

Existe um problema que tem encafifado a mente de grandes pensadores desde muitos séculos. Trata-se do problema da mudança e da permanência. As coisas que observamos ao nosso redor estão em constante mudança e ainda assim algo se mantém durante a mudança. Por exemplo, uma semente é lançada na terra. Ali ela se altera totalmente, em um processo no qual se transforma em árvore. Mas essa árvore gera outras sementes, semelhantes àquela que produziu a árvore. E o processo recomeça. Algo da árvore permanece na semente, embora as duas sejam aos nossos olhos coisas muito diferentes.

Os antigos pensadores tendiam a ver nessa coisa que permanece a essência da coisa. Eles tinham opiniões muito diferentes sobre o que seria essa essência, mas concordavam que algo tinha de manter-se inalterado durante todo o processo de transformações, para garantir que a mudança não caísse em um caos absoluto. Uma semente de abacate não poderia mudar tanto no processo que viesse a se tornar uma jaboticabeira.

Na nossa vida espiritual algo semelhante pode ser observado. Estamos sujeitos a muitas mudanças. Para que aja crescimento espiritual é preciso que algo se altere em nós. Crescer implica em mudar. Mas esse crescimento não acontece de forma desordenada, pois se assim fosse poderíamos nos tornar monstros e não os filhos de Deus à imagem de Cristo, como é o desejo do Pai celestial.

Quais são os elementos essenciais que garantem nosso crescimento espiritual saudável? O apóstolo Paulo alista três elementos que devem permanecer na vida cristã em todas as suas fases de desenvolvimento: a fé, a esperança e o amor.

A fé é a entrega que fazemos a Deus de nossas vidas, mediante a aceitação da obra sacrificial de Cristo na cruz e sua ressurreição. Essa aceitação só acontece pela eficaz persuasão do Espírito Santo, que vence a resistência do nosso pecado. Esta fé tem como sólido conteúdo a revelação do próprio Deus, entesourada de modo especial e insubstituível nas Escrituras.

A esperança é a expectativa de que Deus banirá deste mundo de forma definitiva o mal, na volta de Cristo como Rei e Juiz poderoso, governando-nos com bondade eterna.

O amor é o vigor que permite um relacionamento vital com Deus, por meio do amor do seu Filho e na santificação do Espírito, que nos dá a graça de partilhá-lo com os outros. Só no amor podemos viver o projeto de Deus em Cristo, o Amado Eterno!

Assim o nosso maior desafio durante as transformações que nos afetam é mantermo-nos focados no essencial: fé, esperança e amor. Deles grandes frutos serão eternamente gerados em nós, para a glória do Todo-poderoso!

sábado, 30 de abril de 2011

A Negação Final


Mas aquele que me negar diante dos homens, eu também o negarei diante de meu Pai que está nos céus. (Mateus 10.33)

Mas aquele que me negar diante dos homens será negado diante dos anjos de Deus. (Lucas 12.9)

Recentemente foi divulgada uma pesquisa que coloca o Brasil como a terceira nação que mais acredita em Deus. 84% dos brasileiros disseram crer em “Deus ou em algum ser supremo”. Isso poderia ser interpretado como algo positivo, como uma marca de uma boa espiritualidade. No entanto, afirmar a crença em Deus é apenas o primeiro passo, e não a linha de chegada na espiritualidade cristã. O teste supremo da espiritualidade não é a afirmação, mas a não negação.

O critério de espiritualidade estabelecido pelo próprio Deus em sua Palavra tem como referência máxima e insubstituível a pessoa de seu Filho, o Cristo Jesus. Confessá-lo é confessar o Pai, negá-lo é negar o Pai.

Muitos fazem o raciocínio contrário: Se eu creio em Deus, então eu já tenho Jesus Cristo, automaticamente. Não é assim que a Bíblia nos diz. O “deus” em quem tantos afirmam crer é uma entidade enigmática, um conjunto vazio que pode ser preenchido por qualquer conteúdo, desde a imagem da mãe já morta até o time de futebol do coração. Qualquer coisa poderia entrar na descrição desse “deus” da estatística.

A Bíblia traz um conteúdo precisamente delimitado sobre quem Deus é: temos uma gama de informações sobre os atributos divinos, como eternidade, onipotência, onisciência, atributos estes que se sintetizam em sua santidade e que se personalizam em Cristo, a Palavra Eterna procedente de Deus e encarnada na história para a redenção de seus eleitos. Confessar este Cristo é confessar tudo que Deus é. Negá-lo, ainda que sutilmente, é negar a Deus como Ele mesmo se afirma.

Esta confissão não pode ser meramente verbal, mas vivencial, existencial. Muitos dos que se utilizam do nome de Cristo como uma palavra mágica ou como um instrumento de poder serão negados e rejeitados pelo Senhor no Dia Final (Mateus 7.21-23).

O critério da não negação não é um critério reservado para os dias futuros, para um momento longínquo na história humana. Ela é para hoje, para agora. É por esse critério que Jesus avalia o desempenho da sua igreja (Apocalipse 2.13; 3.8). É a partir da não negação de Cristo que o cristão efetiva a sua missão transformadora no mundo.

“Você crê em Deus?” A carta de Tiago diz que isso não quer dizer nada, pois os demônios também dispõem desse tipo de fé (Tiago 2.19). A pergunta é: “Você nega a Jesus como o Filho de Deus?” Essa é a pergunta que o Anticristo fará e receberá de muitos um sim. E o Pai terá consigo eternamente aqueles que corajosamente disseram não a essa satânica proposta.

domingo, 17 de abril de 2011

Os Presentes e o Roubo

O feriado cristão mais popular e celebrado é sem dúvida o Natal. O nascimento de Cristo é o acontecimento histórico do calendário cristão mais apropriado para festas, trocas de presentes, celebrações grandiosas, cantatas e outras coisas tais.

O outro feriado cristão que recebe mais reconhecimento depois do Natal é a Semana Santa, ou a Páscoa, que acontecerá neste mês. O conjunto histórico de eventos que envolve a condenação, morte e ressurreição de Jesus é lembrado e celebrado, mas geralmente sem a mesma intensidade do Natal. Pelo menos um elemento distingue os dois feriados: Não há presentes na Semana Santa.

Algo que talvez justifique em parte esta visível diferença seja o fato de Jesus ter sido presenteado no nascimento, mas roubado na morte. O Evangelho de Mateus nos informa que Jesus, ainda em tenra infância, recebeu uma comitiva vinda de terras distantes, constituída de sábios desejosos de prestar culto ao prometido Rei dos Judeus. Trouxeram presentes que representavam não apenas a opulência das suas nações, mas também a preciosidade da missão do Ungido do Senhor.

Já na cruz, Cristo é roubado. Seus bens básicos, suas roupas, lhe são tiradas pelos guardas, que as repartem entre si, lançando sortes, e assim, cumprindo o que havia sido predito pelas Sagradas Escrituras (Salmo 22.18). Jesus não teve bens, não acumulou patrimônio. Não tinha casa própria, pois declarou não ter onde reclinar a cabeça (Mateus 8.20). Não tinha economias reservadas, pois não dispunha de denários suficientes para comprar pão para a multidão (Marcos 6.37), nem para pagar o imposto (Mateus 17.27). Quando precisou de transporte, usou barcos que lhe foram emprestados (Mateus 8.23). Se não fosse pela generosa oferta de um homem rico chamado José, Jesus não teria sequer um lugar para ser sepultado com dignidade. Seu corpo seria lançado em uma vala comum a criminosos, numa espécie de aterro sanitário. Talvez o único bem de valor que Jesus possuía fosse a túnica que usava quando foi preso no Getsêmani, uma roupa especial usada para celebrar a última Páscoa com seus discípulos.

Pois até este último bem lhe foi extorquido na cruz. O Filho de Deus foi exposto nu diante dos olhos dos que lhe ridicularizavam. Nada tinha de si, e o pouco que tinha lhe foi espoliado.

Esta é uma marca da diferenciação entre o Natal e a Semana Santa: no primeiro, temos a manifestação da riqueza de Deus, presenteando o mundo com seu maior tesouro, o Filho de Deus, que é reconhecido como o verdadeiro Rei através de ricas dádivas. No segundo, temos o Filho de Deus sendo considerado um criminoso, sem direito sequer a cobrir-se com suas próprias roupas.

Mas a Semana Santa não termina no espólio, mas na ressurreição! Ao terceiro dia, os discípulos constatam que as faixas que envolviam seu corpo foram deixadas no sepulcro. Mais tarde Jesus apresentou-se a eles, não com suas últimas vestimentas, agora em posse de seus algozes, mas com vestes que resplandeciam a sua glória.

Jesus se deixou extorquir para que pudesse em seu sacrifício restituir o que o pecado nos roubou: a dignidade de sermos filhos de Deus. Assim como as roupas roubadas não lhe fizeram falta na ressurreição, nada desse mundo, por mais rico que seja, nos acrescentará algo na hora em que o Filho de Deus nos resgatar e verdadeiramente nos presentear, revestindo-nos de sua glória eterna.